sábado, 31 de outubro de 2015

Polaroids (I)


CENA 099
Sento-me no balanço, ao seu lado, e ao invés de perguntar o porquê de seus pés estarem fixos na areia e você não estar acompanhando o fluxo do vento, apenas me viro a te contemplar. Sempre foi assim. Poucas perguntas e muitos vislumbres. Da parte que lhe cabe, houve tantos questionamentos quanto silêncios; vários instantes de relutante admiração como de olhares fugidios, evitando encarar meu semblante de culpa – a expressão que, talvez, já seja minha máscara mais recorrente: uma marca d'água que, não importava minha feição, permanecia lá inesquecível, lembrando-te de todos os meus deslizes. Seu rosto, por outro lado, nunca vi tão belo. Não havia mais nada à minha direita ou em qualquer outra direção que não à minha esquerda, onde você e sua graça repousavam no balanço. Imaginei logo uma margarida presa nos seus cabelos escuros, véu brilhante que acompanhava o movimento das águas; a flor, pequeno sol, seria a perfeita antítese ao seus olhos, também quase negros. Quando passei por seu nariz delicado e cheguei à sua boca, percebi meu engano: era muito mais solar que as pétalas imaginárias, deixando claro por que seu beijo me revigorava sobremaneira, como se eu tivesse sido invadido por toda a luminosidade que expulsa a noite. Mas daquele momento, eu estava a semanas de ganhar outro beijo seu e não sabia. Se soubesse, talvez teria me balançado tão alto a ponto de ganhar impulso e chegar até a lua – gelada e deserta, como eu me senti nos dias que se seguiram.




CENA 226
Foi por muito pouco que a lâmina não faz um corte na minha face daquela vez em que eu já estava com creme de barbear por todo o rosto e você gritou que eu parasse imediatamente. Achei que seria uma boa ideia aparecer na entrevista de emprego (tão raras!) de 'cara limpa', mas seu argumento de que você preferia eu assim, com cara de hipster, venceu-me em poucos segundos – ainda que eu preferisse um rock mais clássico. Você sempre me vencia, e eu me sentia como derrotado, perdedor. Lavei-me e deixei que você sentisse minha barba com suas mãos e depois com seu próprio rosto. Nunca entendi como uma pele tão macia poderia preferir a aspereza. Era lógico, mas eu não compreendia. Assim como tinha dificuldades de entender como seu coração foi escolher justo a mim. Será que era lógico também?



CENA 21
Eu só sabia rir. Nunca achei que me tornaria esse tipo de pessoa, sinceramente. No entanto, depois do nosso terceiro encontro, eu havia me feito uma pessoa boa; ou melhor, você havia feito isso por mim. A lembrança do sorvete no canto da sua boca e o beijo gelado que veio logo depois era a imagem que eu colocava na frente da bagunça do apartamento que precisava ser arrumada; da discussão com o meu irmão; e com meu pai; do vizinho tocando violino às duas da madrugada; das provas finais de matérias das quais eu sequer sabia o nome direito. Paralisei o filme em qualquer cena dos momentos em que estivemos juntos e, embora a trilha sonora também estivesse congelada, pela primeira vez o silêncio era indiferente aos meus ouvidos. Bob Dylan não era mais necessário em um mundo onde havia sua voz e por meio dela você dizia coisas como 'adoro outonos; se eu estivesse no hemisfério norte, com certeza colecionaria aquelas folhas amarelas ou as bem avermelhadas  quando já perderam toda sua vitalidade e estão decrépitas, quase sem vida , como se isso não fosse mórbido e estranho em muitos níveis'. E eu ria.


| Créditos da foto: "Polaroid Week 2015 - Day 4" by August Kelm, licensed under CC BY 2.0

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Dois

Há uma canção que não me canso de escutar. Foi ela que me indicou; entre uma conversa e outra, entre uma discussão sobre os anos 90 e as narrativas do fim de semana passado. Sinto as rachaduras no meu peito: há coisa lá dentro que, de tão frágil, não se segura – engano meu, mantêm-se unidos os pedaços graças ao calor humano; como é possível que a energia dela viaje tão longa distância para chegar até mim? Eu finalmente estou inspirado para alinhar aquele pensamento no papel: a ideia só surgiu por conta de algo que ela me falou – coisa sem importância, reflexão boba que martelou por horas em movimento repetitivo, até que me reacendeu o ímpeto de escrever. Depois que eu tiver meu rascunho, ela vai revisar; vai dar pitacos; vai me apontar um grave erro que cometi – como fui prepotente naquele trecho, que infelicidade! Agradeço e vou dar uma volta. Quando eu retornar, ela ainda estará lá (exceto após a badalada da meia-noite). Tem uma matéria interessantíssima e quer compartilhar comigo, saber o que eu acho. Eu tenho uma vida não tão interessante assim, que compartilho com ela, para saber o que ela acha. Ela acha que eu deveria ler mais; eu penso o mesmo sobre ela – embora reconheça sua vitória. Nós achamos que nós deveríamos viajar mais. (Olhe lá fora, o mundo está chamando pela gente!) Uma lágrima chega a percorrer o caminho todo até pingar. Não consigo distinguir de quem é; nem se é de tristeza ou de felicidade. Tanto faz. Vai passar, eu digo a ela; espero que sim, ela me diz. Quem conta as estrelas, não conta quanto já foi dito por nós; e quanto foi não dito, mas os dois entenderam. "Ainda preciso lhe contar uma coisa": é meu mantra diário. Pausa – e leio mais um trecho do livro que ela veementemente me indicou. Corto a madrugada e percebo que já amanhece. Olho ansioso para o relógio esperando o bom-dia que me desperta para mais uma fração da vida. Em dias chuvosos, sou seu guarda-chuva amarelo; e vice-versa. Já fomos tanto ao MacLaren's que fica difícil esquecer; e quantas vezes não rimos juntos? Risadas internas de piadas internas que ninguém ao redor é capaz de compreender. Porque ninguém é capaz de nos compreender tão bem. Você entende o que quero dizer? Claro, você sempre entende. Conte-me mais sobre sua sorte no jogo e eu respondo sobre meu azar no amor. Aliás, o que o seu horóscopo prevê para hoje? Palpite: acho que vamos querer estar mortos. Pensando bem, ainda não posso ir: preciso ser seu vizinho e bater na sua porta, te chamando para provar alguma receita que, inseguro, acabei de testar; se você fizer o mesmo, terei que reconhecer sua vitória aqui também. Seu maior prêmio, contudo, deveria advir da paciência de todos esses anos – os que vieram e os que virão – me suportando. Você é mesmo guerreira... posso te presentear? Desta vez, a lembrancinha é este texto aqui. E se existe algum erro nele, desculpe-me: mas é porque você não leu antes.